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Uma adaptação nada fácil para um menino acostumado com a liberdade do campo. Era aprimeira vez que o pequeno Tadeu entrava num apartamento, conhecia os diferentes costumes da “cidade grande”, tinha que seguir os horários rígidos da escola e fazer os deveres de casa.

 

Tudo foi um choque muito grande, até ele descrobir as rodas de capoeira dos mestres Waldemar e Traíra, no mesmo bairro onde morava, a Liberdade. Camisa começou a jogar capoeira de rua, o que o ajudou a adquirir bastante experiência na malandragem do jogo. Foi no campo de futebol “da Usina” e no pátio da escola Pirajá que ele descobriu sua vocação pra ensinar, formou uma turminha e começou a dar aulas de capoeira aos meninos do bairro.

 

Nesta mesma época, o irmão Camisa Roxa aconselhou a mãe a matriculá-lo de uma vez na academia de Mestre Bimba, pois o menino matava aula, ficava de madrugada nas festas de rua da bahia e andava em todo tipo de barra pesada. Onde houvesse capoeira lá estava ele jogando. Foi feito um acordo: ele só poderia treinar com Mestre Bimba se passasse a freqüentar regularmente a escola. Deu certo, mas nos fins de semana ele continuava os treinos com os colegas do bairro, principalmente para que fizessem bonito nas rodas da “Festa de Reis”, tradicional no bairro da Lapinha.

 

Jogar capoeira para a meninada da bahia é como futebol, bola de gude, soltar pipa ou pião, todo mundo sabe. Apesar de já ser iniciado, ao chegar à academia de Bimba, Camisa seguiu o ritual dos novos alunos: o Mestre segurou suas mãos para ensiná-lo a gingar. Gingou com ele e depois de alguns testes, como agachamento, queda de rins e passada de pés por cima da cadeira, pediu que um formado mostrasse a Seqüéncia ao novo aluno. Como já havia aprendido com Camisa Roxa, Camisa também fez a Seqüéncia e, a partir daí, o desenvolvimento foi bastante rápido. No mesmo mês foi batizado pelo formado Calango, mantendo toda a tradição da capoeira.

 

A identificação e o prazer que Camisa sentia com a capoeira se traduziram em aprimoramento técnico. A cobrança que havia por ele ser irmão de camisa Roxa serviu como incentivo para que melhorasse a cada dia. Camisa nunca faltou a uma aula da academia de Mestre bimba; só se ausentou uma vez, quando voltou para a Fazenda Estiva a fim de acompanhar a mãe, que estava muito doente.

 

Sua evolução na academia foi rápida e se formou com 14 anos, em 1969. Seus companheiros de formatura foram Macarrão, Onça negra e Torpedo; a irmã Noemilde foi sua madrinha. Uma festança em Amaralina com direito às tradicionais histórias contadas por Mestre Bimba, rituais, prova de fogo, demonstrações de cintura desprezada, jogo de benguela, jogos com capoeiristas de renome, formados antigos e samba de roda até o amanhecer.

 

Paralelamente ao treinamento na academia de Mestre Bimba, Camisa também participava de shows de cultura brasileira que naquela época eram famosos na Bahia. Havia apresentações de samba de roda, puxada de rede, candomblé, maculelê e capoeira. Os shows eram como companhias teatrais, com cerca de 50 pessoas – artistas, bailarinos e capoeiristas – que se apresentavam em casas de shows, teatros, boates, clubes e programas de televisão em todo o Brasil e também no exterior. Camisa participou dos grupos Viva Bahia, Ogundelê e Olodum Maré, este último dirigido por seu irmão Camisa Roxa. Nesta época faziam parte do elenco Lua Rasta, Vilobaldo, Cobrinha do Pastinha, Manoel Pé de Bode, João Grande, Mistura Fina, Lucídio, Pamponé, Sérgio Tatá e diversos outros renomados capoeiristas. Uma lembrança marcante desta época para Camisa foi no show “Heranças de Angola”, no teatro Vila Velha, em Salvador, quando, ainda moleque, foi escolhido por Mestre João Grande para abrir o espetáculo, fazendo um jogo de angola com ele.

 

Em 1972, com 16 anos, depois de uma turnê pelo Brasil com o show “Furacões da Bahia”, a companhia Olodum Maré chegouao Rio de Janeiro para uma temporada de seis meses. Fizeram apresentações no Canecão, Teatro Opinião e Teatro Municipal de Niterói, ao mesmo tempo em que ensaiavam um novo show para uma turnê européia. Neste período o elenco de 40 pessoas se hospedou na antiga Casa do Estudante, na Lapa; depois foram para a Hospedaria Sul América, também na Lapa, e mais tarde alugaram uma casa de cômodos inteira, na Rua das Laranjeiras.

 

Nos intervalos dos espetáculos e dos ensaios, Camisa aproveitava o tempo para conhecer a capoeira do Rio de Janeiro. Junto com os integrantes do show – Gatinho, Fernandinho, Lustroso, Flecha, Sarigüe, Roberto, entre outros -, freqüentava as rodas de capoeira da cidade. A primeira roda que conheceu foi a do Grupo Senzala, aos sábados, na qual já tinha vários conhecidos da Bahia. Foi a todas as rodas de capoeira do subúrbio, conheceu os velhos mestres e procurou visitar as academias de capoeira.

 

Chegou a hora da partida do grupo para a Europa e, como combinado, esta também era a hora de Camisa voltar para Salvador, retomar sua vida na capital baiana e terminar os estudos. Camisa Roxa deixou três diárias da hospedaria pagas, dinheiro para a alimentação e a passagem de ônibus de volta para a Bahia. Mas ele estava decidido a ficar no Rio de Janeiro, havia se identificado com a cidade, a cultura e o povo carioca. Gostava das praias, do clima, do samba, de tudo. O que também pesou em sua decisão foi o fato de Mestre Bimba estar de malas prontas para Goiás, além de seu irmão e ídolo Camisa Roxa ter viajado para a Europa.

 

Rasgou a passagem e jogou no esgoto. Uma semana depois acabou o dinheiro, e ele ficou na rua. Com vergonha de pedir ajuda às pessoas que conhecia, fingia que ia viajar e dormiu dois dias na Rodoviária. Foi quando se lembrou de Arthur, um nordestino que havia conhecido numa hospedaria em Laranjeiras. Contou a história, e o amigo o deixou dormir clandestino no chão do pequeno quarto.

 

Chegava tarde da noite e tinha que sair antes do amanhecer, pois não era permitido outro hóspede no mesmo quarto. Foram dias difíceis, mas Camisa seguia em frente, firme em seu objetivo de trabalhar com capoeira no Rio de Janeiro.

 

Em frente ao casarão da hospedaria, na Rua Cardoso Júnior, havia a academia de judô Nissei. Os proprietários eram os professores Haroldo e Maranhão, um grande tocador de berimbau que já havia participado de um espetáculo com Camisa Roxa. O jovem Camisa foi até lá, contou novamente a sua história e pediu para dar aulas de capoeira e dormir na academia. Maranhão topou na hora e botou uma placa na porta: Aulas de Capoeira. O primeiro aluno matriculado foi um gaúcho, que havia assistido ao espetáculo da Bahia, no Rio Grande do Sul, e, coincidentemente, estava morando na mesma rua da academia. O pagamento era 50% para a academia e 50% para Camisa; o dinheiro da primera mensalidade foi direto para o português do boteco em frente, Seu Zé, para ser descontado em almoços. Agora já tinha onde comer e dormir, podia retomar sua rotina de treinamentos.

 

A entrada no Grupo Senzala aconteceu meio por acaso. Camisa continuava a freqüentar a roda dos sábados e agora também levava seus alunos para jogar. Um dia houve um jogo “duro” e um bate-boca em que um capoeirista de fora disse que ele não pertencia ao Senzala e estava “tirando onda”. Foi quando alguns integrantes do Senzala o defenderam, dizendo que ele era do grupo, que tinha vindo da Bahia, era aluno de Mestre Bimba e irmão de Camisa Roxa, a quem deviam muito, pois os havia ajudado com conhecimentos e treinamentos, além da acolhida em Salvador, acompanhando-os em todas as rodas e os apresentando aos velhos mestres baianos.

 

A partir daquele momento, Cláudio, Danadinho, Borracha, Preguiça e outros, ao comprarem o barulho, integraram Camisa ao Grupo Senzala. Foi assim que, em 1973, com 18 anos, Camisa começou a usar a corda vermelha, de professor. Naquela época na Bahia não se usava corda e na academia de Mestre Bimba não havia graduação, os capoeiristas usavam apenas uma cordinha para segurar a calça ou o cordão de São Francisco.

 

Foram 13 anos de Senzala. Logo depois de sua entrada no Grupo, Gato cedeu a Camisa seus horários e começaram as aulas na Associação. Camisa logo se tornou importante na organização do Grupo, ficando inclusive responsável pela roda dos sábados durante muitos anos. Em 1977 formou seus primeiros cordas vermelhas no Clube Guanabara: Cláudio Moreno, Arara e Mula. Naquela época eram todos professores, ninguém era mestre, nem o próprio Camisa. O trabalho foi crescendo, Camisa desenvolveu uma didática própria e tornou-se uma referência na capoeira carioca.

 

Paralelamente às aulas, continuavam os convites para shows, peças de teatro, exibições e até um filme, o Cordão de Ouro, dirigido por António Carlos Fontoura. Camisa interpretava – pintado de preto – o Ogum, que batizava o personagem principal vivido por Nestor Capoeira. Para a preparação passou uma temporada com Nestor no Camping do Recreio, treinando para o filme. Em 1982, para a inauguração do Circo Voador, em Ipanema, montou junto com os seus alunos, os atores Chico Dias (Bem-te-Vi) e Cláudio Balthar (Parafina), o espétaculo “Cantos e Danças da Terra”, com várias manifestações culturais brasileiras e a capoeira como carro-chefe.

 

Os primeiros convites para o exterior foram de Camisa Roxa. Viajava para participar das temporadas de shows do irmão na Europa. A capoeira exercia uma atração enorme nos estrangeiros, que sempre queriam aprender e ver um pouco mais. Chegou a realizar cursos nos próprios teatros em que se apresentavam, depois ficava uma semana, 15 dias e até um mês dando aulas. Os primeiros interessados foram na Alemanha e na França. No início Camisa não tinha alunos graduados dispostos a assumir um trabalho no exterior, mas com o tempo foi preparando professores para ensinar capoeira na Europa. Muitos também iam para os shows e ficavam depois das temporadas.

 

Movido pela necessidade de uma reflexão sobre o momento da capoeira no Brasil, Camisa aproveitou o espaço democrático do Circo Voador, já instalado na Lapa, para realizar, em 1984, o 1ª Encontro Nacional da Arte Capoeira. O encontro reuniu todos os segmentos da capoeira e contou com a presença do grandes Mestres da Bahia, assim como capoeiristas do Brasil inteiro. Durante uma semana, eles participaram de atividades como palestras, vivências, depoimentos e tiveram a oportunidade de trocar experiências e jogar bastante capoeira até de madrugada.

 

Em meados da década de 1980, Mestre Camisa já era referência na capoeira brasileira e internacional. Além de ser conhecido pela excelência de sua técnica, também se tornou um pesquisador, desenvolveu sua própria metodologia e um moderno sistema de ensino de capoeira. Sua grande preocupação sempre foi a profissionalização dos capoeiristas, mas para isso precisava que a capoeira conquistasse respeito e ocupasse o lugar de destaque que merecia na cultura brasileira.

 

Em 1986, Mestre Camisa desligou-se do Grupo Senzala e montou o Grupo Capoeirarte, mas, depois de dois anos, sentiu necessidade de uma instituição que agregasse mais os capoeiristas, que tivesse um significado maior e os apoiasse em suas dificuldades de moradia, alimentação, distância da familia e todos os problemas que ele mesmo tinha vivido em sua chegada ao Rio. Que fosse mais que um grupo, fosse uma verdadeira escola de capoeira. Assim surgiu, em 1988, a Abadá-Capoeira – Associação Brasileira de Apoio e Desenvolvimento da Arte Capoeira – com o objectivo de apoiar a formação de capoeiristas profissionais.

 

http://www.abadacapoeira.com.br

 

A fundação da Abadá-Capoeira possibilitou a Mestre Camisa dar maior ênfase ao lado social da capoe

ira, não só oferecendo um apoio mais global para os próprios alunos, como também lançando campanhas sociais que auxiliam os segmentos menos favorecidos da sociedade. Atualmente a Abadá-Capoeira é uma das maiores divulgadoras da cultura brasileira dentro e fora do Brasil. Está presente em todos os estados brasileiros, representação efetiva em mais de 60 países, com um total de, aproximadamente, 70 mil associados.

 

Em 28 de maio de 2010, o Conselho Universitário da Universidade de Uberlândia outorgou o título de Doutor Honoris Causa ao Mestre Camisa por causa do seu trabalho de pesquisa e divulgação da cultura brasileira. Indicado como personalidade eminente que contribui de modo relevante para o desenvolvimento da cultura afro–brasileira e detém valioso conhecimento sobre capoeira, Patrimônio Imaterial Brasileiro e se distingue por sua atuação cultural, social e educacional no Brasil e no exterior. A solenidade aconteceu dia 5 de maio de 2011, durante o Encontro Internacional Abadá-Capoeira realizado de 05 a 07 de maio, na cidade de Uberlândia, com o apoio da UFU.

 

Em 2013, foi inaugurado o Complexo Residencial Mestre Camisa, conjunto habitacional na cidade de Romilly-sur-Seine, na França, reconhecendo o seu trabalho e a sua personalidade. Nesse evento participaram mais de 200 capoeiristas chegados de toda a Europa.

 

Hoje, Mestre Camisa mora no CEMB. Lá, ele dá aulas a crianças e forma professores. Também promove encontros com centenas de pessoas, que além de treinar capoeira, fazem trilhas e cavalgadas. Tudo faz parte do conceito da capoeira ecológica que ele tem criado. O mestre promove rodas no meio do mato e planta árvore para fazer berimbau. Criou até um “berimbau vivo”, amarrando a corda no tronco de uma árvore.

 

José Tadeu Carneiro Cardoso nasceu no dia 28 de outubro de 1955 na Fazenda Estiva, em Jacobina, sertão da Bahia, filho de pai boiadeiro e mãe dona de casa, numa família de nove irmãos e um primo, “que foi criado junto” – cinco meninas e cinco meninos. As brincadeiras preferidas dos garotos eram andar a cavalo e brincar de capoeira, imitando as histórias doa heróis capoeiristas do sertão baiano que, sozinhos, “botavam pra correr”, com pernadas, dois, três e até dez homens.

Por volta de 1963, seu irmão mais velho, Camisa Roxa, começou a ensinar aos irmãos as lições que aprendia na academia de Mestre Bimba em Salvador, para onde havia se mudado, a fim de terminar os estudos. As aulas atraíam toda a garotada da região, irmãos, primos e até os vaqueiros, que também se identificavam com a capoeira. Treinavam no terreiro da fazenda, no gramado, no curral, nos barrancos dos rios e dentro d’água. A morte do pai, em 1964, precipitou a mudança da família para Salvador. 

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